domingo, 8 de maio de 2011

STF, União Homoafetiva e Literatura Britânica



Sim, o Supremo Tribunal Federal (STF) disse sim à união homoafetiva, sepultando, de uma vez, a inércia legislativa de mais de vinte anos. Aliás, uma demora não só atribuível ao Congresso, mas também aos demais legitimados para deflagrar o início do processo de controle objetivo de constitucionalidade dos dispositivos legais que, supostamente, impediam o reconhecimento da união homoafetiva. A inércia de uns, infelizmente, causou a angústia e sofrimento de um número bem numeroso de casais brasileiros.

Mas, não comentarei juridicamente a decisão do STF. Os votos foram- quase que in totum - incensuráveis. O que me chamou mais a atenção, em todo o julgamento, foi um trecho da sustentação oral feita por Luís Roberto Barroso, grande constitucionalista e procurador do Estado do Rio de Janeiro, que representava, naquele momento, o Governador daquele Estado, autor da ADPF nº 132, julgada juntamente com o ADI 4277.

Barroso iniciou sua sustentação não com questões jurídicas, mas sim narrando a importância - filosófica - do amor e suas interações com o princípio da dignidade da pessoa humana. Durante o discurso, chamou-me a atenção o relato a respeito do escritor britânico, mais especificamente irlandês, Oscar Wilde, cuja obra mais famosa é intitulada " O Retrato de Dorian Gray". Wilde foi um fenômeno literário de sua época e é hodiernamente ainda considerado um dos grandes nomes da literatura nas terras da Rainha. Em um poema chamado "O Amor que Não Ousa Dizer Seu Nome", Wilde relata sua paixão proibida, ou seja, o seu amor por um outro homem e que lhe rendeu dois anos de prisão e trabalhos forçados. A seguir, o poema:

O Amor que Não Ousa Dizer Seu Nome

Bateu-lhe à porta, ao acaso, um dia.

E ele, inebriado pela cotovia

(que paira à janela, mas depois some...),

Sentiu crescer, súbito, na alma, u'a fome

De algo que, até então, desconhecia.

Desejo... estranheza... culpa... agonia...!

Desce aos umbrais, na angústia que o consome!

... porém, depois das lágrimas enxutas,

Chamou a cotovia, deu-lhe frutas,

E sorveram, um no outro, a própria essência.

E ambos, nessa atração de semelhantes,

Num cingir de músculos, os amantes

Ergueram-se aos portais da transcendência."



Em apaixonadas letras, Wilde relata - com a inextrincável paixão da alma dos amantes - o seu amor proibido, o seu amor "que não ousa dizer seu nome". Depois de sentenciado por suas relações tidas como "imorais", Wilde, que teve sua saúde muito debilitada em razão das condições da prisão, faleceu em Novembro de 1900.

A relação da decisão emanada do Pretório Excelso e a literatura britânica - aqui focada nas manifestações literárias de Wilde - revela que o desfecho da decisão da Corte Suprema se irradia para além das teses jurídicas. Revela, ao fim e ao cabo, um pronunciamento cuja essência poderia ser resumida na seguinte assertiva "basta ao sofrimento, no sim ao amor, seja ele como for". A decisão evita que sofrimentos como do jovem escritor irlandês venham a se repetir e abre espaço para o aprimoramento de um Estado Democrático de Direito cuja radícula é o próprio valor-fim da dignidade da pessoa humana.




quarta-feira, 4 de maio de 2011

A Morte de Bin Laden e o Direito Penal do Inimigo

Indubitavelmente se teve um assunto corrente nesta semana foi a morte de Osama Bin Laden, inimigo número um dos Estados Unidos da América. O fato é um marco na "Guerra contra o Terror" iniciada com as reações americanas ao ataque às torres gêmeas, em Setembro de 2001.

A morte de Bin Laden também traz questões jurídicas de profundo peso, cuja abordagem se sobressai ao direito de guerra e entra também na esfera do direito penal, mormente quando comparado com a corrente do Direito Penal do Inimigo, de cunho pós-finalista e cujas bases teóricas são atribuídas ao penalista tedesco Günther Jakobs.

Longe de esgotar, ou até mesmo querer elaborar um ensaio a respeito dessa corrente do direito penal, é mister estabelecer alguns marcos da corrente em cotejo, cuja "estreia" acadêmica, de fato, deu-se no ano 2003, com a publicação da obra "Direito Penal do Inimigo". Em apertadíssima síntese, poderíamos eleger/elencar as seguintes características do Direito Penal do Inimigo: a) é um direito penal do autor, ou seja, não se pune o deliquente por um fato típico, antijurídico e culpável, mas se pune tão somente pelo o que ele é e não pelo que ele fez; b) a culpabilidade não passa mais a ser o limite de atuação do direito penal, ou seja, não se pune mais baseado na culpabilidade do sujeito-agente e sim na periculosidade que este possa representar ao "sistema"; c) não é um direito penal que pune o fato em si, enquanto conduta delitiva ocorrida em determinado momento histórico (retrospectivo), e sim um de cunho prospectivo, cujo mero perigo do perigo - em razão da caracterização de alguém ou alguma classe como inimiga - já legitima a intervenção/repressão estatal. Outra importante cacterística citada por Damásio E. de Jesus (2008) é que se legitima com mais frequência a imposição de medidas de segurança, o que faz possível extrair que o criminoso - ou o inimigo - não é um mero agente que agiu em desconformidade com o direito vigente e tutelado pela norma penal, mas sim alguém perigoso e que merece até tratamento. Outra interessante ponderação feita por Damásio (2008) é que o direito penal do inimigo se inclina à punião de atos meramente preparatórios e justifica até mesmo a imposição de penas mais severas para esta tipologia delitiva do que para aqueles em que de fato houve a agressão ao bem jurídico penalmente tutelado. Luís Flávio Gomes (2005) vai além e diz que o inimigo, para a corrente penal em apreço, não é mais um cidadão, sujeito de direitos, e sim "objeto de coação". Assim, o cidadão que delinque ainda estaria alberguado pelas proteções constitucionais, como a ampla defesa e o contraditório, ao passo que o inimigo, ao delinquir: "perde esse status (o importante é só sua periculosidade)".

Ora, e quem são os inimigos? É justamente a definição da classificação de determinado crime/sujeito como um delito-agente apto a caracterizar seu autor como inimigo ou como um deliquente comum que demonstra uma das bandeiras mais perigosas do Direito Penal do Inimigo. A escolha, ao fim e ao cabo, é meramente discricionária de cada Estado e será influenciada de acordo com a ideologia reinante em cada Estado. Segundo Luís Flávio Gomes (2005): "Em poucas palavras, é inimigo quem se afasta de modo permanente do Direito e não oferece garantias cognitivas de que vai continuar fiel à norma. O autor [Jakobs] cita o fatídico 11 de setembro de 2001 como manifestação inequívoca de um ato típico de inimigo". Nota-se, portanto, que a eleição do inimigo passa por um verdadeiro critério discricionário. Ademais, não se pode olvidar que muitos já ocuparam esse papel, como, por exemplo, as mulheres, queimadas como bruxas durante o Santo Ofício. Aliás, nota-se, em alguns países europeus e até mesmo algumas unidades federativas americanas, que o inimigo em voga não é ninguém mais, ninguém menos do que o imigrante ilegal.

A ideologia do direito penal do inimigo demonstra, destarte, um total descompasso com postulados mínimos do Direito Penal de cunho garantista. O Direito Penal deixa de ser "do fato" e passa ser "do autor", deixa de ser retrospectivo para ser pro futuro. Existem outras importantes bases do Direito Penal do Inimigo de cuja exposição nos furtamos, mas, apenas para aguçar a curiosidade, boa parte da doutrina de Jakobs está sedimentado filosoficamente nas teorias contratualistas, vez que "os inimigos" teriam o condão de abalar as estruturas do próprio pacto social, impondo-se, então, um tratamento diferenciado.

Mas, depois de toda esta pequena exposição, qual seria a relação do inimigo e o falecimento de Bin Laden? A relação é justamente que a morte do inimigo estadunidense, sem qualquer julgamento, em ato que poderia até ser comparado a uma execução, e a comemoração que tal ato despertou em diversos países, incluído aí até mesmo o Bloco Europeu, demonstra que a ideologia de Jakobs está longe de estar trancada nos porões da academia. A morte do Inimigo é não só justificada pelos Estados Unidos e demais países que manifestaram seu apoio à operação, como também é comemorada, um verdadeiro menoscabo ao Estado Democrático de Direito e as garantias fundamentais do cidadão. A atrocidade do atentado de 11 de Setembro de 2001, por maior que seja, não tem o condão de extirpar os direitos e garantias fundamentais de quaisquer de seus autores, que devem ser julgados e, caso condenados, submetidos às penas legalmente previstas. O deliquente pode desrespeitar a Constituição e os direitos fundamentais - e quando assim age deve ser submetido a julgamento pelo juízo natural e respeitadas as demais garantias, como o contraditório e a ampla defesa - o Estado, ao revés, deve respeito incondicional aos postulados constitucionais, sob pena de regressarmos aos tempos do Código de Hamurabi e passarmos a considerar nossas constituições, como na concepção lassaleana, como mera folha de papel.

Fontes:

GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal do Inimigo (ou inimigos do direito penal). Revista Jurídica Unicoc, Ano II, n.º2, 2005. ISSN 1807-023X

JESUS, Damásio E. de. Direito penal do inimigo. Breves considerações. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1653, 10 jan. 2008. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/10836. Acesso em: 3 maio 2011.