segunda-feira, 18 de julho de 2011

O Perigo das "Democracias"

Artwork by Erik Photo: Mouvement des Creatifs Suisse  
    Calma... O título, de fato, pode assustar, porém a ideia central não pode ser melhor resumida do que com ele mesmo.  As democracias são conhecidas justamente pela possibilidade de participação popular na tomada de decisões. O modelo como essa participação se dá é que varia, até mesmo de maneira significativa, entre os diversos Estados soberanos que compõem aquilo que podemos chamar de "comunidade das nações".
    Com o passar dos anos, foi possível notar um aprimoramento do próprio conceito de democracia. Saímos do conceito de mera "vontade da maioria" e chegamos ao estágio do Estado Democrático de Direito, no qual o ideal majoritário encontra seu limite na própria Constituição, ou seja, a democracia, hodiernamente, é mais do que meramente uma operação matemática entre o "sim" e o "não"sobre determinado assunto em pauta.
   Ocorre que é possível observar hoje, principalmente (e estranhamente) em alguns países europeus, um certo retrocesso na concepção de Constituição - e quando aqui se trata dela está a se falar de um texto que cujas raízes sejam os direitos e garantias fundamentais, ou seja, um conjunto de normas capazes de limitar o poderia estatal e ao mesmo tempo criarem obrigações positivas aos Estados - enquanto limitadora daquilo que Tocqueville (A Democracia na América) já tratava como a "ditadura da maioria".
   Essas afirmações são baseadas em duas notícias que têm chamado muito a atenção do continente europeu: a intolerância em relação ao Islã. Começando pela França, foi notícia no mundo todo a proibição em relação ao uso da burca, vestimenta religiosa típica da comunidade islâmica. Mas qual seria a relação desse fato com a ideia do perigo da democracia numérica? Pois bem, em interessante artigo publicado pelo jornal francês L'Express, pode-se notar que pela primeira vez nas eleições presidenciais francesas, um assunto, dentre os mais sensíveis, não será a imigração, mas sim o crescimento do islamismo. Segundo a referida matéria, para 76% dos franceses da clásse média, o Islã cresce muito na França.  O referido periódico cita ainda outra pesquisa do também francês "Le Monde", na qual se constatou que para 42% dos franceses entrevisados, a presença de uma comunidade islâmica seria uma ameaça à França. Nota-se, em ambas as pesquisas, que o crescimento de uma religião cujos valores diferem dos valores tradicionais das religiões ocidentais tem assustado os franceses e, no plano juspositivo, a lei que proíbe as burcas parece abraçar esse temor.
   Outro país no qual o crescimento do Islã tem causado polêmicas é a Suíça. Em novembro de 2009, um plebiscito aprovou, por 57,5% dos votos,  uma emenda à Constituição daquele país proibindo a construção de minaretes, tradicional construção islâmica.  Em uma atitude totalmente descompassada dos valores democráticos e plurais, a Suíça simplesmente passou a proibir esse tipo de arquitetura, interdição esta que só alcança os templos religiosos islâmicos, ferindo, portanto, o direito de uma minoria a praticar suas expressões religiosas. Nesta semana, a Corte Europeia de Direitos Humanos, sediada em Estrasburgo, decidiu negar seguimento à demanda proposta contra a referida emenda. Assim entendeu a Corte :" La Cour parvient donc à la conclusion que sa saisine par les requérantes a pour seul but de contester une disposition constitutionnelle et que celles-ci n'ont pas apporté la preuve de circonstances tout à fait exceptionnelles susceptibles de leur conférer la qualité de victimes. Au vu de ce qui précède, la Cour considère que la présente requête constitue une actio popularis et est donc incompatible ratione personae avec les dispositions de la Convention. Partant, elle doit être rejetée en application de l'article 35 §§ 3 et 4 de la Convention.Par ces motifs, la Cour, à la majorité,Déclare la requête irrecevable." (Em tradução livre: "O Tribunal, portanto, chega à conclusão de que esta demanda foi proposta pelos requerentes com o único propósito de desafiar uma disposição constitucional e que eles não forneceram provas de circunstâncias muito excepcionais susceptíveis de qualificá-los como vítimas. Em vista do exposto, o Tribunal considera que o presente feito é uma actio popularis e é, portanto, incompatível ratione personae com as disposições da Convenção. Deve, portanto, ser rejeitada nos termos do artigo 35 § § 3 e 4 do Convention. Por estas razões, o Tribunal, por maioria, declara o recurso inadmissível ).
   Com a decisão acima, a Corte de Estrasburgo, como também é conhecida, entendeu que os requerentes dos pedidos de análise da referida emenda suíça frente à Convenção Europeia de Direitos Humanos não tinham a qualidade de vítima e, destarte, negaram seguimento ao feito. Na prática, o que o Tribunal entendeu foi que ele não se presta a uma análise abstrata de eventual controle de convencionalidade entre normas dos países signatários e o Tratado. Há, então, a necessidade de que haja lesão à Convenção em cotejo para que possa a Corte examinar o caso. A decisão em apreço parece não fechar, definitivamente, as portas para análise do caso futuramente. Aliás, segundo o referido diploma, em  seu art. 9º, item 2: "A liberdade de manifestar a sua  religião ou convicções, individual ou  colectivamente, não pode ser objecto de  outras restrições senão as que, previstas  na lei, constituírem disposições  necessárias, numa sociedade  democrática, à segurança pública, à  protecção da ordem, da saúde e moral  públicas, ou à protecção dos direitos e  liberdades de outrem.". É de se aguardar, então, que a Corte possa logo conhecer do mérito de eventual violação, pela norma helvética. da Convenção.
    O perigo da "democracia" nasce, portanto, quando esta se desalinha do "Estado de Direito", modelo cuja irradiação normativa deve necessariamente passar pelo filtro de validade da própria Constituição. Defender a força normativa da Constituição é defender, não raras vezes, questões impopulares, vez que a Constituição é, essencialmente, contramajoritária, na medida em que não permite, por meio dos direitos  e garantias fundamentais, que a maioria numérica sufoque politicamente a minoria. A democracia numérica é, ao fim e ao cabo, tão perigosa como a tirania.
   A Europa, conhecida pelo seu respeito aos direitos dos homens, parece enfrentar uma crise ideológico-política quando, mais do que nunca, deveria fazer valer aquilo que em 1789 já declaravam os franceses, em sua Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão: "Os homens nascem e são livres e iguais em direitos."


Fontes:

MANDONNET, ÉRIC. L'islam sera un thème d' élection en 2012 (http://www.lexpress.fr/actualite/politique/l-islam-sera-un-theme-de-l-election-en-2012_956852.html).

HERVIEU, Nicolas. Interdiction des minarets en Suisse : la Cour de Strasbourg recule – temporairement? – devant l’obstacle en l’absence de victime (Cour EDH, Déc. 28 juin 2011, “Ligue des musulmans de Suisse“ et a. et H. Ouardiri c. Suisse). (http://combatsdroitshomme.blog.lemonde.fr/2011/07/16/interdiction-des-minarets-en-suisse-la-cour-de-strasbourg-recule-%E2%80%93-temporairement-%E2%80%93-devant-lobstacle-en-labsence-de-victime-cour-edh-dec-28-juin-2011-%E2%80%9Cligue-des-musu/).

Corte Europeia de Direitos  Humanos. Ligue des musulmans de Suisse“ et a. et H. Ouardiri c. Suisse. (http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?action=html&documentId=887980&portal=hbkm&source=externalbydocnumber&table=F69A27FD8FB86142BF01C1166DEA398649)